Foi através do teatro que, pela
primeira vez na minha vida, nos anos 60, ouvi falar de Nelson Mandela.
Estudante, depois professor de direito internacional e, desde o início,
militante do anticolonialismo e do anti-racismo, eu me opunho ao
apartheid, mas o homem que liderava a luta ainda não tinha um rosto para
mim. No Festival de Nancy, encontre Jean Guiloineau, diretor do Grupo
de Teatro Antigo da Sorbonne, que ia apresentar Ajax,
de Sófocles. Grande conhecedor da África do Sul, ele traçou para mim o
retrato de Mandela, cujas memórias viria a traduzir muitos anos depois.
Sua admiração pelo prisioneiro de Robben Island me impressionou muito.
Talvez tenha sido a forma como se deu esse primeiro encontro o que me
levou a perceber dede o início o gosto que o líder africano manifestou
durante toda sua vida pela cultura e pelo teatro. E a colocar minha
narrativa sob a invocação da dramaturgia universal, de Sófocles a
Corneille e de Shakespeare a Cesaire.
Aparementemente, a paixão pela arte não é uma característica importante
de Nelson Mandela. Os analistas a negligenciam, com frequência, mas eu
acho que se trata de uma das chaves de sua personalidade. Quando ele era
estudante, representou, numa companhia amadora, o papel de assassino do
presidente Lincoln. “Meu papel era pequeno, mas eu era o elemento motor
da moral da peça, segundo a qual os homens que assumem grandes riscos
devem estar preparados para as pesadas consequências daí decorrentes.”
Ele continuou sendo o elemento motor o resto da vida.
Morreu no dia 05/12/2013 o líder sul-africano Nelson Mandela, um
dos personagens que com sua vida e atuação resumem parte do século 20.
Em sua condição de símbolo planetário, Mandela sempre foi alvo de grande
atenção pública – primeiro com a comunidade internacional protestando
contra seu confinamento, depois, ao provar na prática que poderia ser o
governante de um tempo em que as pesadas e infames feridas do Apartheid
pudessem cicatrizar – ainda que demoradamente, em um processo que não
acabou até hoje.
Um
personagem dessa dimensão não poderia, portanto, deixar de ser alvo de
um bom número de biografias. Já deve andar perto da centena o número de
livros publicados sobre o ex-prisioneiro que se tornou presidente e
símbolo de uma das vitórias da Humanidade contra a Barbárie
(infelizmente elas são menos do que gostaríamos). Muitas delas já têm
tradução no país – Mandela é provavelmente uma das personalidades
estrangeiras com o maior número de histórias de sua vida editadas por
aqui. Uma delas é o livro de onde foi extraído o trecho que vocês leram
acima: Mandela – uma Lição de Vida, de Jack Lang
(Tradução de Rubia Prates Goldoni, Mundo Editorial, 240 páginas) – um
livro que tem lá seu tom de particularidade interessante porque Lang não
é um biógrafo comum, é o ex-ministro da Cultura da França, e estrutura
sua biografia de Mandela como quatro atos correspondentes a mitos
históricos da dramaturgia ocidental: Antígona no primeiro; Espártaco no segundo; Prometeu acorrentado no terceiro e o sonhador Próspero de Shakespeare no quarto. O quinto o apresenta como o protótipo do rei sábio presente em muitas culturas.
Menos ambiciosa intelectualmente, mas com maior poder de comoção talvez seja Mandela, Retrato Autorizado, de Mac Marahaj e Ahamed Kathrada (Tradução
de Alexandre Moschella e Joana Canedo. Editora Alles Trade, 356
páginas) – um livro que, como seu título já anuncia, é um texto
autorizado pelo próprio Mandela e que trabalha para construir a imagem
épica do estadista africano, seja por meio de narrativa de sua vida em
tons elevados, seja com depoimentos de personalidades que conheceram Mandela, como o bispo sul-africano Desmond Toutou, o presidente dos Estados Unidos Bill Clinton e o cantor Bono Vox ou
ainda por uma ampla coleção de imagens da trajetória de Mandela. É o
Mandela “oficial” dos livros de história, o líder aclamado por um mundo
abismado com a força de sua trajetória e de seu exemplo.
A mais recente biografia de Mandela a aportar nas livrarias brasileiras é Mandela: O Homem, a História e o Mito, de Elleke Boehmer (Tradução
de Denise Bottmann, L&PM, 224 páginas). É uma biografia que tenta
avançar além da biografia de estilo jornalístico, mesclando os relatos
sobre a vida de Mandela com interpretações históricas e acadêmicas sobre
sua trajetória. É um dos textos desta série mais sólidos em analisar as
circunstâncias e o pano de fundo da trajetória de Mandela para além do
binômio “homem x mito” estabelecido pela persona pública do político
sul-africano após a sua libertação. Não se tem aqui nem o herói
admirável nem o militante de atuação controversa. Mandela é mostrado – a
certa altura, em paralelo com Gandhi – como um
personagem que lutava contra o imperialismo que, a seu modo, o tornou
possível. Após décadas de domínio opressor, formou-se, a duras penas,
uma massa crítica de figuras de proa nascidas no país com vontade de
questionar o sistema em que viviam. Uma boa biografia para quem quer
mergulhar em um panorama geral de Mandela e seu tempo.
Outra biografia, esta narrada por meio das próprias palavras do estadista sul-africano é Mandela: Conversas que Tive Comigo (Tradução de Ângela Lobo de Andrade, Nivaldo Montingelli Jr. e Ana Deiró. Rocco, 415 páginas),
compilação de cartas e documentos pessoais de Mandela, gravações e
depoimentos reunidos pela fundação que leva seu nome e reúne reflexões
do personagem sobre o lado íntimo de seu sofrimento: a ausência na vida
da família por quase três décadas de prisão imposta pelo regime racista
do apartheid; os conflitos de uma vida dividida entre a luta política e a
família – essa oposição, em configurações diferentes, levaria ao fim de
dois casamentos, com Evelyn Mase ( 1944 a 1957) e Winnie Mandela (1957 –
1996). Embora o material tenha sido compilado por uma instituição
oficial ligada a Mandela, o tom não é celebratório ou condescendente. Há
diversas passagens em que Mandela faz uma autoanálise bastante dura
sobre seus anos de juventude – e fala muito, também, sobre a dor de
quase três décadas de encarceramento. Um texto sobre o livro pode ser lido aqui:
Esse
é apenas um dos livros em que se pode ler a vida de Mandela pelas
palavras dele próprio. Como menciona o biógrafo Lang no texto citado,
Mandela foi também um um esteta além de estadista. Suas memórias foram
publicadas nos Brasil também há duas décadas, pela Globo, com o nome de Nelson Mandela: A Luta é a Minha Vida - mas hoje duvido que se ache fora de sebo ou da Estante Virtual.
E há uns dois anos a Martins Editora publicou uma coletânea de contos
infanto-juvenis escolhidos pelo próprio Mandela, com o nome de Meus Contos Africanos (Tradução de Luciana Garcia, 156 páginas, R$ 54,80), reunindo histórias tradicionais do continente.
Há ainda Conquistando o Inimigo: Nelson Mandela e o Jogo que Uniu a África do Sul, de John Carlin, que inspirou o filme Invictus, de Clint Eastwood
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